Wednesday, September 13, 2006

Morte na família

Tudo subia Scarlet acima.
E ela não percebia a razão. Ódio. Qual era a criança de dez anos que sabia o que era o ódio? Talvez fosse Scarlet Brown. Odiava o simples ar que respirava. Odiava o deserto que a prendia. Odiava as raízes do seu lar. Odiava quem a amava. Odiava. Porque sim. E porque o ódio leva a mais ódio.
Evitava Whiteless. Respondia torto a Mrs Stone. Respondia com olhares aos olhares do tio. Os olhares que só agora Tom Browm se atrevia a lançar-lhe e aos quais ela não se inibia de responder. E nenhum deles se dava por vencido. Não fossem sangue do mesmo sange. Areia do mesmo pote. Gente, vulgarmente conhecida por má rês. Scarlet sabia que o era e odiava-se por isso. E odiava-se ainda mais por não o ser ainda mais. Um paradoxo. Mas quem é que vai querer explicar a uma criança de dez anos o que um paradoxo?
Scarlet odiava. Era a única certeza que se retirava do seu comportamento. Era a característica mais marcante do seu comportamento. Com o tempo que passava isso vincava-se. Como se vincava a mudez de Whiteless, cada vez mais convencido que a sua virtude era obdedecer incondicionalmente ao que quer que fosse. Mrs Stone, com o tempo, fora alimentando a tristeza. A sua menina adorável morrera juntamente com o pai. Agora só conhecia uma dúbia mulher precoce. E que seria dessa mulher, para todos os efeitos indefesa, quando fosse confrontada cara a cara com Tom Brown. A velha viúva envelhecia ao dobro da velocidade, e ia concentrando os seus derradeiros esforços em afastar Scarlet de Tom, a sobrinha do tio. Acerca disso falara duas vezes com ele. Da primeira vez ele ignorara-a. Da segunda respondeu-lhe com uma estalada. Aquelas guerras contra o inevitável era mais do que a sua debilitada saúde permitia. Não demorou muito, pois, até não permitir mais.
Até que Mrs Stone morreu.

De cansaço, de tristeza, de desalento ou doença, ninguém sabia.
Scarlet perante o cadáver e o olhar inerte da sua segunda mãe pouco mais que meia dúzia de lágrimas chorou. Sentimentos já não eram a sua guerra. Muito mais chorou Whiteless, que queria impedir a todo o custo que Tom Brown a levasse. Mas o homem levou a melhor, levou o cadáver da velha mulher e enterrou-o ou queimou-o em parte incerta. Scarlet viria mais tarde a culpar-se e a atormentar-se por ter tão impavidamente permitido que tal acontecesse.
Sem Mrs Stone por ali, Tom Brown tornara-se ainda mais insinuante. Mais óbvio nos seus objectivos. Whiteless percebeu desde logo o que ele pretendia e foi ter uma conversa com ele. No dia seguinte, Scarlet viu o rapaz cuspir sangue e dentes, com um olho inchado.
Um dia, poucos dias depois, Tom Brown foi ter com Scarlet, tapou-lhe a boca e só lhe segredou "Tu já sabias que era assim que teria de ser". Scarlet lacrimejou em silêncio e gritou para si. Maldito homem. Maldita vida. Maldito sangue. Do que aconteceu a seguir nesse dia, Scarlet só se lembraria nalguns dos seus pesadelos. Nalguns dos seus muitos pesadelos. Fora brutalmente violada. Mas quem é que vai querer explicar a uma criança de 10 anos o que era ser brutalmente violada? Ninguém. Ninguém quereria dizer àquela criança de 10 anos a vida, que a sua vida a partir daquele momento começaria a descarrilar por completo.