Wednesday, March 09, 2005

Pensamentos de alguém

Anoitecia. Era estranho ver como a cidade era rasgada pelos gentios sedentos de dinheiro. Eram nessas alturas que se sentia só. E se houve coisa que durante a sua longa vida (longa demais, por vezes, e por vezes tão curta) nunca o afectou, foi a solidão. Há uma primeira vez para tudo, dizem os populares. Cuspiu para o chão. Não gostava de populares nem das suas filosofias baratas. Retomou o passo. Tentava tirar um padrão da frenética agitação populacional. Pareceu-lhe difícil. Desistiu. Como poderia ele perceber a motivação das gentes, quando estas são tão disformemente motivadas por ninharias? Incompreensível? Não. Confuso. Preferia não fazer juízos de valor. Parou para acender o cigarro, e de caminho levantou as golas da gabardina. As crises de tosse que o atacavam sem piedade poderiam ter origem naquela maldita brisa. Se bem que algo lhe dizia que era do tabaco. Ignorou o assunto e continuou. Um mendigo pediu-lhe, suplicante, uma esmola, e esse sim, tossia. Ele teve o cuidado de se desviar. A mais e mais, o mendigo estava condenado. O pobre ainda lhe implorou uma última vez em nome de Deus. Ele lançou-lhe um último olhar sarcástico por cima da gola da gabardina. Via-se bem que aquele mendigo não conhecia Deus. Ele não gostava de Deus. Deus tinha um sentido de humor muito dúbio. Já o Diabo não conhecia. Nunca lhe fora apresentado. Talvez um dia, quem sabe. Ele não. Nem queria. Perguntou-se se teria fome. Já não a tinha há tanto tempo que já lhe perdera o gosto. Mais tarde, pensou, talvez mais tarde. De repente, desatou a tossir. Como odiava tossir. Alguns olhos indiscretos viraram-se para ele, se bem que por pouco tempo. O fluir contínuo da multidão não a permitia olhar fixamente para o que quer que fosse. Ainda assim, preferiu caminhar ao abrigo das sombras mais próximas. Era melhor não se arriscar. Acendeu novo cigarro e disse para si próprio que seria um tanto ridículo, para não dizer humilhante, morrer daquele mal de que tanto se falava. Cancro, ou lá como é que era. Tinha de deixar de fumar. Mas não nesse dia. No seu vago caminho em direcção a algo, deu por si a suspirar. Quão rápido era o mundo. Parecera ter sido no dia anterior que o vira nascer, e já o via caminhar a passos largos para a morte. Como todos afinal. Como todos. Deitou fora o cigarro, enquanto tentava abrir caminho por entre a multidão adversa. Anoitecera.